domingo, 28 de setembro de 2008

Deixa eu brincar de ser feliz – Um conto de solidão

Por Cristian Boragan

Um dos princípios da hipnose é o sono quando olhamos fixamente um objeto por muito tempo, por isso, aquela imagem do hipnólogo com um relógio de bolso nas mãos nos é tão forte em termos de atração. A mesma sensação hipnótica tem Herbert ao olhar por muito tempo o limpador de pára-brisas do carro em movimento. A chuva é pouca e o barulho da borracha das paletas sobre o vidro vinha numa constante ritmada. A estrada é faz tempo uma linha reta e Herbert pouco se movimenta dentro do veículo, ele não precisa trocar as marchas, ou virar o volante ou ainda pressionar mais ou menos o acelerador. Este é o trecho da Rio-Santos, logo depois de Ubatuba e Herbert está a caminho de Paraty. Para piorar a situação, não é possível sintonizar muito bem a maioria das rádios e Herbert procurou por um bom tempo no dial, indo e voltando várias vezes, até que algum som pudesse finalmente ser encontrado. Herbert ouviu apenas o refrão "...deixa eu brincar de ser feliz..." e o quarentão, que não conhecia nada sobre a música ou sobre a banda, gostou do que ouviu.

Herbert é a figura do jornalista infeliz e sempre fora taxado por este adjetivo porque é uma daquelas pessoas dominadas pelas outras. Essa impressão de "frouxo" que temos de Herbert vem com o tempo. Numa primeira olhada, dá para se enganar com a postura visceral e explosiva dele frente aos problemas. Usando uma máquina de raios-X, vemos que Herbert era dominado por seus colegas de trabalho, pelos seus filhos e por uma esposa que, se dependesse das vontades ocultas dele, já seria ex há muito tempo. Podemos afirmar usando uma margem de 80% de acerto: talvez nem jornalista ele seria se não fosse obrigado a isso na infância. O curioso é que as mulheres exercem um maior poder sobre Herbert. Por gostos e decisões pessoais talvez, vemos a vida de Herbert apenas pelo lado negativo, o lado fracassado..., mas temos outras verdades para dizer ao seu respeito: o homem é um gênio das redações por onde passa e se fosse um mercenário, seria hoje uma pessoa muito rica e poderosa. Não era assim, pois Herbert temia a Deus, o Deus cruel e impiedoso do Velho Testamento.

Naquela noite e sem motivo algum, Herbert decidiu se libertar daquela situação. Foi assim mesmo! Ele não precisou de nenhum evento como "gota d'água". Quieto e com a polidez habitual, pegou seu carro e resolveu dirigir sem destino até que as idéias de que fazer com o peso da sua própria vida ficassem mais claras. Herbert mora bem próximo ao centro de São Paulo e quando se deu conta já estava na Rio-Santos a caminho de Paraty. Durante esses anos todos, Herbert foi hipnotizado pela vontade dos outros. Ele tinha crises existenciais pelo menos três vezes ao dia e não sabia muito bem o que fazer com elas no plano concreto. De verdade, ele pedia com toda fé a Deus que o livrasse daquele cálice.

Num rompante desses, espera-se que a pessoa seja "iluminada" de alguma forma e busque forças para mudar de vez aquilo que "emperra" a sua felicidade. Herbert dirigia sem destino em busca da tal "iluminação". Como ela não veio mesmo, Herbert abaixou a cabeça mais uma vez e sentiu muita vergonha. Ele vai voltar para casa, vai pedir desculpas para os filhos que o manipulam, para a esposa que não ama, para a amante - seu verdadeiro amor - que talvez nunca vá assumir e pela manhã, vai acordar bem cedo para não chegar atrasado ao trabalho. E o que ele vai fazer lá? Defender aquilo que não acredita.
PS: Baseado na canção ‘Todo Carnaval Tem Seu Fim’ da banda Los Hermanos.

Nenhum comentário: